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31/10/2019

Receita Federal distorce guidelines da OCDE ao analisar contrato de cost-sharing

A Receita Federal desqualificou novamente um contrato de cost sharing internacional, desta vez, alegadamente em razão de não ter identificado benefício mútuo entre as empresas participantes do rateio, o que, segundo o fisco, seria fundamental para a qualificação deste tipo de contrato.

O caso analisado refere-se ao rateio, sem adição de qualquer margem de lucro, dos custos internos incorridos pela matriz de determinado grupo empresarial, localizada nos EUA, em benefício de diversas entidades do grupo espalhadas pelo mundo, incluindo a sociedade brasileira consulente. Não foram objeto da consulta, portanto, o rateio de custos centralizados na empresa norte americana referentes à contratação de fornecedores que prestam serviços ao grupo.

A solução de consulta reforça a orientação da Solução de Consulta nº 8/12 e da Solução de Divergência nº 23/13, no sentido de que os contratos de cost sharing, para serem assim qualificados, dependem da adequação a determinados aspectos ou requisitos, entre eles (i) caráter instrumental das atividades cujo custo é rateado (i.e.: atividades-meio); (ii) natureza contributiva; (iii) previsão de critério de rateio objetivo e razoável e (iii) ausência de margem de lucro.

O que chama atenção na recente solução de consulta é a exigência para que haja demonstração inequívoca do benefício mútuo entre os participantes do acordo.

No caso proposto pela consulente, não teria sido identificado benefício para a matriz centralizadora ao incorrer em custos com atividades que favorecem as demais empresas do grupo: Em que pese as atividades ligadas ao departamento de engrenharia desempenhadas pela matriz resultarem em benefícios para a filial brasileira (…) é possível identificar que a matriz está desempenhando atividades sem quem tenha uma vantagem esperada.

O pressuposto do fisco é de que essa exigência estaria contida nos guidelines da OCDE para os acordos de cost sharing.

É fundamental, portanto, contextualizar adequadamente a diretriz da OCDE: as guidelines representam um conjunto de recomendações direcionadas aos países-membro na estruturação de suas políticas de transfer pricing. Incluem, também, questões que tangenciam as discussões sobre transfer pricing e, nesse sentido, dedica um tópico específico para o Contratos de Contribuição de Custos (Cost Contribution Arrangements) e as suas especificidades a serem consideradas na avaliação das regras de transfer pricing.

O curioso é que ao referir ao benefício mútuo para a qualificação do que seria, na visão da OCDE, um típico contrato de cost sharing, a Receita Federal transcreve trecho das guidelines da OCDE sobre os Cost Contribution Arrangements, estes sim dependentes de benefício mútuo. Importante esclarecer que os Cost Contribution Arrangements possuem natureza distinta dos cost sharing, pois destinam-se a compartilhar custos e dividir riscos inerentes ao desenvolvimento de ativos, sendo comumente utilizados na geração de intangíveis.

Esclareço: para justificar a posição adotada na solução de consulta, a Receita Federal parece ter embaralhado conceitos distintos insertos nos guidelines para justificar seu entendimento e atrair a maior carga tributária possível, afirmando incidirem tributos cujas alíquotas nominais superam 40%.

Veja-se a transcrição do texto da OCDE na versão referida pela Receita Federal na Solução de Consulta nº 276 comparada à original, em língua inglesa:

 

 

Trecho citado na Solução de Consulta nº 276/19

 

Versão original das guidelines da OCDE

Chapter VIII

 

Cost Contribution Arrangements

 

A.            Introduction

 

8.1           This chapter discusses cost contribution arrangements (CCAs) between two or more associated enterprises. The purpose of the chapter is to provide some general guidance for determining whether the conditions established by associated enterprises for transactions covered by a CCA are consistent with the arm’s length principle. The analysis of the structure of such arrangements should be informed by the provisions of this chapter and other provisions of these Guidelines and should be based on an adequate documentation of the arrangement.

 

(…)

 

“8.3 Um “Cost Sharing Agreement” é um acordo contratual entre empresas para compartilhar as contribuições e riscos envolvidos no desenvolvimento conjunto, produção ou obtenção de intangíveis, ativos tangíveis ou serviços com o entendimento de que tais intangíveis, ativos tangíveis ou serviços devem criar benefícios para os negócios individuais de cada um dos participantes.

 

(…)

 

8.3           A CCA is a contractual arrangement among business enterprises to share the contributions and risks involved in the joint development, production or the obtaining of intangibles, tangible assets or services with the understanding that such intangibles, tangible assets or services are expected to create benefits for the individual businesses of each of the participants.

 

 

(…)

 

 

8.14 Como o conceito de benefício mútuo é fundamental para um contrato de compartilhamento de custo, segue-se que uma das partes não pode ser considerada participante se a parte não tiver uma expectativa razoável de que se beneficiará dos objetivos da própria atividade do contrato (e não apenas de executar parte ou toda a atividade do sujeito), por exemplo, da exploração de seu interesse ou direitos sobre os ativos intangíveis ou tangíveis, ou do uso dos serviços produzidos através do contrato. Portanto, um participante deve receber um benefício ou direitos sobre os intangíveis, ativos tangíveis ou serviços que são objeto do contrato e ter uma expectativa razoável de poder se beneficiar desse interesse ou desses direitos. Uma empresa que realiza exclusivamente uma atividade, por exemplo, desempenhando funções de pesquisa, mas não tem interesse nessa atividade, não seria considerada um participante no contrato de compartilhamento de custos, mas sim um provedor de serviços. Como tal, deve ser compensado pelos serviços que presta em uma base externa à acordo de compartilhamento. Da mesma forma, uma empresa não participaria de um rateio de despesas se não fosse capaz de explorar o benefício em seu próprio negócio.’ (tradução livre)”

 

 

 

 

8.14         Because the concept of mutual benefit is fundamental to a CCA, it follows that a party may not be considered a participant if the party does not have a reasonable expectation that it will benefit from the objectives of the CCA activity itself (and not just from performing part or all of the subject ativity), for example, from exploiting its interest or rights in the intangibles or tangible assets, or from the use of the services produced through the CCA. A participant therefore must be assigned an interest or rights in the intangibles, tangible assets or services that are the subject of the CCA, and have a reasonable expectation of being able to benefit from that interest or thouse rights. An enterprise that solely performs the subject activity, form example performing research functions, but does not receive an interest in the output of the CCA, would not be considered a participant in the CCA but rather a service provider to the CCA. As such, it shoult be compensated for the services it provides on an arm’s lenght basis external to the CCA. See paragraph 8.18. Similarly, a party would not be a participant in a CCA if it is not capable of exploiting the output of the CCA in its own business in any manner.

 

 

 

 

 

(destaquei)

(destaquei)

 

Chama atenção a substituição da abreviação “CCA” (usada para Cost Contribution Arrangement) por Cost Sharing Agreement na transcrição do documento pela Receita Federal.

A própria solução de consulta, em trecho imediatamente anterior, aponta justamente as diferenças entre “o contrato de compartilhamento de custos” (em inglês, Cost Sharing Agreement) e “o contrato de contribuição para os custos” (em inglês, Cost Contribution Arrangement ou CCA, sigla utilizada no documento da OCDE).

Conforme esclarece a solução de consulta, o contrato de compartilhamento de custosvisa uma vantagem coletiva ou global”, através de uma estrutura “que realiza atividades em benefício à coletividade do grupo”. Já no caso do contrato de contribuição para os custos, o objetivo é “repartir os custos e riscos do desenvolvimento, produção e obtenção de ativos (…) bem como definir a extensão dos interesses de cada participante.” Ou seja, enquanto no Cost Sharing a ideia central é ratear entre as empresas beneficiadas os custos incorridos em favor da coletividade do grupo, no Cost Contribution o intuito é dividir riscos e custos no desenvolvimento de ativos que, eventualmente, poderão reverter em ganhos para aqueles que contribuem – por esse motivo, naturalmente, tal tipo contratual deve endereçar os benefícios que cada participante irá auferir.

Alberto Xavier, em sua obra de referência “Direito Tributário Internacional do Brasil”, já apontava com clareza a distinção entre ambos os tipos contratuais. Os seguintes trechos são especialmente esclarecedores:

[sobre os acordos de repartição de custos – Cost-sharing agreements]

Os acordos de repartição de custos cost-sharing agreements, Kostenumlage) têm por objeto as situações, via de regra existentes nos grupos multinacionais, em que uma empresa do grupo (normalmente a “Sociedade-Mãe”) ou uma entidade de propósito específico (“Centro de Serviços do Grupo”) realiza despesas em proveito de todas ou parte das demais sociedades integrantes do grupo. A finalidade dos referidos acordos consiste precisamente em determina o modo como e em que medida estas últimas sociedades devem comparticipar dos “custos” incorridos pela primeira no interesse delas, ressarcindo-os através do pagamento de “preços” adequados.

[sobre os CCAs – Cost Contribution Arrangements]

(…) a OCDE elaborou as seguintes recomendações para efeitos de aplicação do critério “at arm´s lenght”: os acordos devem incluir como participantes apenas as empresas que esperam obter benefícios mútuos, direta ou indiretamente, da atividade objeto do CCA e não apenas para executar uma parcela dessa atividade; o acordo deve especificar a natureza e a extensão da vantagem (beneficial interest) de cada participante nos resultados da atividade; nenhum pagamento adicional às contribuições deverá ser feito para a vantagem obtida através do CCA. As quotas de contribuições deverão se determinadas por métodos que reflitam a partilha dos lucros esperados; o acordo deve prever pagamentos compensatórios, de modo a refletir alterações nas expectativas de lucros; o acordo deve contemplar ajustes a serem feitos em razão da entrada ou retirada das partes de CCA ou da terminação deste.

Apesar da clara diferenciação entre ambos os tipos contratuais e o esclarecimento nesse sentido apresentado pela própria Receita Federal, a solução de consulta toma uma direção imprevisível e tecnicamente insustentável: de acordo com a posição adotada na solução de consulta, “não pode ser considerado participante de contrato de compartilhamento de custos a parte que não tenha uma expectativa razoável de que terá benefício dos objetivos do contrato de compartilhamento de custos. Caso uma das empresas do grupo desempenhe uma função específica sem necessariamente esperar nenhum benefício, haverá uma prestação de serviços intragrupo.”

De se notar que o próprio emprego de tempo verbal futuro (i.e.: “de que terá benefício”) já indica que se estaria frente a um contrato de contribuição para os custos (cost contribution arrangement), e não de um cost sharing.

A questão é que, ao embaralhar os conceitos de cost contribution e cost sharing, a Receita Federal passa a exigir a presença de uma característica típica dos contratos de cost contribution nos acordos de cost sharing, tornando-a inexequível na prática.

Infelizmente, a Receita Federal, ao entender que a centralizadora dos custos não obteria benefício comum sobre os custos objeto de rateio, qualificou o contrato analisado como de prestação de serviços. Consequentemente, o fisco afirmou incidirem IRRF, CIDE e PIS/COFINS-Importação sobre os valores pagos ao exterior. Resta aos contribuintes, com sorte, reverterem judicialmente esse entendimento absurdo do órgão que deveria orientá-los quanto à correta interpretação e aplicação da legislação tributária.

Solução de Consulta nº 276/19